Introdução
A pandemia de COVID-19 implicou proliferação legislativa tendo por objeto os mais diversos temas e, embora imbuídos de sentimentos nobres em defesa da população os quais nem sempre traduzem segurança jurídica e reflexos positivos à sociedade.
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro foi promulgada a Lei 9020/2020, que “determina a suspensão do cumprimento de reintegração de posse e imissão na posse, despejos e remoções judiciais e extrajudiciais enquanto medida temporária de prevenção ao contágio e de enfretamento da propagação decorrente do novo coronavírus (COVID-19).
De constitucionalidade duvidosa, a Lei 9020/2020 teve sua eficácia restabelecida por força de decisão, em caráter liminar, proferida pelo Exmo. Ministro Ricardo Lewandowski, do STF, nos autos da Reclamação 45319, apresentada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, após suspensão de eficácia determinada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Esse artigo tem o escopo de analisar os reflexos da Lei Fluminense sobre os direitos de propriedade do arrematante de imóveis em leilão, abordando, sob o prisma da boa-fé contratual e processual, a necessidade de constar, nos editais de leilão de imóveis no Estado do Rio de Janeiro, a existência da lei fluminense e seus reflexos sobre o exercício pleno do direito de propriedade. Passar-se-á ao largo do enfrentamento constitucional, pois já sua análise está sob a batuta da Corte Suprema.
A Lei 9020/20202
O Projeto de Lei 2022/2020, do Estado do Rio de Janeiro, foi integralmente vetada pelo Governador do Estado, sendo esse veto derrubado pela casa legislativa. Daí surgiu a Lei 9020/2020, que prontamente foi objeto de representação de inconstitucionalidade ajuizada pela
1 Pós-Graduando em Direito Notarial, Registral e Imobiliário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Graduado em processo civil pela Universidade Federal de Vitória. Advogado com atuação em direito imobiliário. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil
link acesso em 18.02.2020
Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro3. Concedida a liminar4 para suspender sua eficácia sob o pálio de invasão da seara privativa da União Federal, o texto da lei fluminense teve a eficácia restaurada pelo STF. Enquanto o artigo 1º da lei suspende “todos os mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais no Estado do Rio de Janeiro” em processos tendo por objeto exclusivamente as “situações de litígio em relação à ocupação de imóveis que antecedam a data da publicação da lei” ou artigo 2º veda a “aplicação e cobrança de multas contratuais e juros de mora em casos de não pagamento de aluguel ou das prestações de quitação dos imóveis residenciais”, mas desde que comprovada a situação de vulnerabilidade. Não qualquer vulnerabilidade, mas “absoluto estado de necessidade”.
Analisando-se as justificativas do Projeto de Lei 2022/20205, se afere que o objetivo foi dar proteção à parcela da população de menor capacidade econômica. Em sua justificativa, o Projeto de Lei expõe que as “condições de moradia das populações mais pobres já se caracterizam pelo adensamento excessivo e coabitação”.
Porém, o texto da lei não trouxe expressamente essa hipótese de proteção ao hipossuficiente econômico e os efeitos dessa omissão são sentidos por locadores e arrematantes de imóveis em leilão, muitos de bens de elevado valor, que se veem impedidos de reaver ou serem imitidos na posse direta em razão do gravame decorrente da Lei 9020/2020.
O leilão de imóveis
No âmbito dos processos judiciais, o leilão de imóveis deve ser precedido de publicação de edital contendo a descrição do bem penhorado e, também, a “menção da existência de ônus, recurso ou processo pendente sobre os bens a serem leiloados”6.
A Lei 9514/97 traz a previsão de que o lance apto a arrematação deverá ser igual ou superior ao valor do imóvel7 ou, no segundo leilão, “o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”8.
3 Processo nº 0079151-15.2020.8.19.0000
4http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0004644284DAB30E7AD262C423D961CF65ADC50D48395933&USER= acesso em 18.02.2021
5http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1923.nsf/0c5bf5cde95601f903256caa0023131b/74bd55baaf190cd70325852e0069581b?OpenDocument&Highlight=0,20200302022&ExpandSection=1 acesso em 18.02.2021
6 Código de Processo Civil – artigo 886
7 Lei 9514/97 – artigo 27, §1º c/c artigo 24, IV e art.24, parágrafo único.
8 Lei 9514/97 – artigo 27, §2º
Porém, tanto numa seara quanto noutra se afere a aplicação do dever de transparência e segurança jurídica aqueles que participem do leilão, com a exposição de tudo o que incide ou poderá incidir sobre o bem. Essa é a previsão do artigo 886, do código de processo civil, aplicado aos leilões judiciais, bem como dos artigos 27§ 2 e 27º2 – B, ambos da Lei 9514/97
Cabe ao leiloeiro oficial, na seara judicial ou extrajudicial, a confecção dos editais de leilão dos imóveis. Portanto, por ser derivado de seu múnus, eventuais falhas traduzem dever de reparar os danos9.
A lei fluminense nº9020/2020, portanto, ao impedir o pleno exercício do direito de propriedade, não pode ser omitida dos editais de leilão de imóveis situados no Estado do Rio de Janeiro, pois aquele que dele participar fazendo lances deve ter ciência inequívoca sobre a possível impossibilidade de ser imitido na posse direta do bem por período de tempo indeterminado, pois sujeito ao fim da pandemia, cenário nebuloso e distante10.
Dever de informações sobre a Lei 9020/2020
O código de processo civil prevê hipóteses nas quais o arrematante poderá desistir da arrematação e entre as quais se encontra aquela que impõe o ônus de “provar nos 10 (dez) dias seguintes, a existência de ônus real ou gravame não mencionado no edital”11
E daí surgem 2 pontos essenciais: i) o código de processo civil seria aplicado de modo subsidiário ao procedimento da Lei 9514/97 ? e ii) a Lei de Introdução do Direito Brasileiro traria reflexos por força do seu artigo 3º?
Quanto à aplicação subsidiária do CPC ao procedimento da Lei 9514/97 se constata ser usual e a prova cabal dessa afirmação reside na imposição de piso de 50% sobre o valor da avaliação do bem imóvel quando da realização do 2º leilão12.
No que tange à aplicação da LINDB acerca da impossibilidade de ser alegado desconhecimento da lei estadual 9020/2020 a questão é mais complexa à medida que se trata de lei estadual com objeto para lá de questionável sobre o âmbito da constitucionalidade e cuja eficácia é objeto de liminares num sentido e noutro. Mais uma vez socorrendo-se do CPC, não se pode olvidar que ao litigante que alegar legislação estadual deverá provar a eficácia e validade da 9 Superior Tribunal de Justiça – REsp 1035373 / MG -Relator Ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, Julgamento em 15.08.2013, publicado no DJe de 27.08.2013
10 No dia 06.04.2021 foram registradas 4.195 mortes em 24 horas
11 Código de Processo Civil – art. 903, §5º, I.
12 Artigo 891, parágrafo único, do CPC.
lei se assim o juiz determinar13, sem prejuízo de ser poder dever do magistrado buscar os fins sociais e exigência do bem comum quando da aplicação da lei14.
Portanto, a finalidade dos editais de leilão é dar informações sobre os riscos inerentes ao ato e, com isso, autorizar a livre e consciente manifestação de vontade daquele que decide arrematar e contribuir com a circulação de riquezas para satisfação dos direitos creditórios com o produto da venda dos bens imóveis submetidos à leilão. Na seara extrajudicial, os leilões dos imóveis submetidos ao regime da alienação fiduciária em garantia possuem o escopo, inclusive, de manutenção do fluxo de financiamentos à aquisição de bens imóveis.
Os desdobramentos sociais obtidos com os leilões são aferidos sob diversas facetas e, nesse esteio, o Código de Processo Civil dá conta da necessidade de constar, nos editais de leilão, a “menção da existência de ônus, recurso ou processo pendente sobre os bens a serem leiloados”.15
Aa impossibilidade de ser imitido na posse dos imóveis arrematados enquanto vigente a emergência sanitária é relevante para a formação da convicção daqueles que ambicionem arrematar imóveis em leilão no Rio de Janeiro, especialmente na seara extrajudicial, cujo prazo fixado em lei para imissão na posse é de 60 dias após propositura da ação com esse objetivo16. E mesmo com os tradicionais atrasos nos tramites processuais, a imissão na posse é factível e tangível, o que não se dá quando imposta a condição de finalização da crise sanitária, especialmente diante da claudicante vacinação e adoção de medidas em combate da pandemia pela COVID-1917.
Lei fluminense 9020/2020 e seus reflexos aos direitos de propriedade dos adquirentes
Aperfeiçoada a arrematação e concretizado o respectivo registro seria autorizado ao adquirente o exercício dos direitos reais decorrentes de seu domínio caso não fossem eficazes os efeitos da Lei 9020/2020.
13Código de Processo Civil – art. 376. A parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar.
14 Decreto Lei 4657/1942 – artigo 5º
15 Artigo 886, VI. 16 Lei 9514/97 – Art. 30. É assegurada ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os §§ 1° e 2° do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome.
17 Não se cogite que a fixação da taxa de ocupação do artigo 37-A da Lei 9514/97 seria suficiente para manter a utilidade da prestação caso ignorado o dever de informação.
Reprise-se que há vedação ao direito de reivindicar, o que para SCAVONE é consequência do Direito de Sequela, uma das características dos direitos reais1819:
“Decorrência da oponibilidade erga omnes, a sequela é a faculdade concedida ao titular do direito real de habitação de perseguir a coisa nas mãos de quem quer que a detenha, de apreendê-la para sobre a mesma exercer o seu direito real.
O proprietário, por exemplo, possui o direito de retomar a coisa das mãos de quem quer que a detenha injustamente, invocando, para tanto, o seu direito de propriedade”
Aqui não se está afirmando ser vedada a busca da tutela jurisdicional, mas, sim, que é inócua a busca em razão da impossibilidade de ser obtido o bem da vida almejado enquanto vedada a imissão na posse dos imóveis ocupados pelos arrematantes em leilão.
Ao atingir o elemento externo ou jurídico do direito de propriedade, a Lei do Estado do Rio de Janeiro 9020/2020, por conseguinte, impõe restrições ao exercício dos elementos internos, pois ao adquirente tampouco é autorizado gozar, fruir e dispor do bem imóvel arrematado2021.
A cláusula geral de boa-fé impõe o dever de informações claras e precisas sobre as nuances da arrematação e devem ser prévias ao leilão, pois isso autorizará a ponderação econômica financeira para dar lances, o que se desdobra inclusive para aspectos sociais22.
Essa é a razão do artigo 886, VI, do CPC e artigos 27§ 2 e 27º2 – B, ambos da Lei 9514/97.
Conclusão
O dever de informação decorre da boa-fé objetiva, enquanto cláusula geral, e impõe ao intérprete a hermenêutica do negócio jurídico consoante seus ditames.
Nesse aspecto, tudo o que refletir na ponderação dos riscos para a formação de vontade dos arrematantes deve constar nos editais de leilão, seja judicial ou extrajudicial, especialmente
18 SCAVONE Junior, Luiz Antonio, 1966 – Direito Imobiliário – Teoria e Prática/Luiz Antonio Sacavone Júnior- 8ªed – Rio de Janeiro: Forense, 2014, pag. 5
19 No mesmo sentido Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil: direitos reais – 3ªed – São Paulo: Atlas, 2003 – (Coleção direito civil; v.5)
20 Idem, fls. 10, destacando que o autor classifica gozo e fruição enquanto similares.
21 Sobre classificação entre direito interno e externo enquanto elementos estruturantes do direito à propriedade, ver Coleção Tópicos de Direito Civil, coord. Milton Delgado Soares – vol2 – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.459
22 Exemplo disso é de um casal que almeja adquirir imóvel para moradia após o casamento. A utilidade da prestação se manterá hígida caso lhes seja possível imissão na posse previamente a data fixada.
quando se tratar de impossibilidade de imissão na posse direta dos bens adquiridos via leilão e, por arrasto, o exercício de outros direitos ínsitos à propriedade, como se dá em razão da lei fluminense 9020/2020.
A Lei 9020/2020, ao ter sua eficácia restabelecida pelo STF, impôs gravame aos imóveis situados nos limites do Estado do Rio de Janeiro os quais, mesmo transitórios, devem ser informados nos Editais de Leilão, haja vista a omissão de notícias sobre as limitações ao direito de propriedade autorizar, aos arrematantes, desistir da arrematação nos 10 dias subsequentes à arrematação, seja na seara judicial, seja na extrajudicial, por força do artigo 903, §5, I, do CPC23, aplicado à primeira hipótese e à segunda, nesse caso supletivamente. Caberá ao juiz ou ao Oficial do Cartório de Registro de Imóveis analisar os argumentos trazidos pelo arrematante, pois ambos estão adstritos pela legalidade.
Passado esse decêndio, caberá a propositura de demanda com base no artigo 903, §4º, do CPC, porém essa hipótese implica solução ineficiente diante do trâmite processual, o que traduz possibilidade de buscar indenização por perdas e danos em razão do descumprimento da clausula geral de boa-fé e falha nos deveres do leiloeiro.
23 Código de processo civil – art. 803 (…) § 5º O arrematante poderá desistir da arrematação, sendo-lhe imediatamente devolvido o depósito que tiver feito: I – se provar, nos 10 (dez) dias seguintes, a existência de ônus real ou gravame não mencionado no edital, ii – I – se, antes de expedida a carta de arrematação ou a ordem de entrega, o executado alegar alguma das situações previstas no § 1º